O Cazaquistão está mudando seu alfabeto oficial do atual cirílico para outro baseado no latino, que é utilizado para escrever a maior parte das línguas ocidentais. A transição, prevista para ocorrer em etapas até 2025, vai sair caro – o governo estima algo próximo de R$ 2,5 bilhões, valor que economistas acreditam estar subdimensionado.
No passado, o cazaque já foi escrito com os alfabetos árabe e latino. Assim, a mudança, também realizada em períodos anteriores por outras ex-repúblicas soviéticas, tem sido interpretada como um meio de o Cazaquistão voltar ao passado e reiterar sua posição como país independente.
O novo alfabeto foi anunciado em outubro de 2017 e recebeu críticas da população – algo raro para um país governado há três décadas pelo pulso firme de Nursultan Nazarbayev. A primeira versão foi considerada “feia” e passou por uma reformulação em fevereiro, que substituiu apóstrofes por acentos agudos.
Então, por exemplo, República do Cazaquistão, que no formato inicial seria escrita como Qazaqstan Respy’bli’kasy virou Qazaqstan Respýblıkasy. Essa última versão parece ter agradado mais.
“Está mais bonito!”, exclamou Asset Kaipiyev, dono de um pequeno restaurante em Astana, capital do Cazaquistão, ao ver o novo formato do alfabeto, aprovado pouco antes por Nazarbayev.
Kaipiyev abriu seu restaurante em dezembro e chamou-o de Sa’biz, soletrado com a primeira versão do alfabeto latino. Mas todo seu material de marketing – do guardanapo ao enorme letreiro – terá que ser substituído. Kaipiyev não cogitou a hipótese de o governo rever o alfabeto e agora estima gastar US$ 3 mil (R$ 11,2 mil) com a mudança.
O que Kaipiyev e outros donos de pequenos negócios estão passando afetará em maior escala o país, que precisará mudar desde documentos oficiais a livros didáticos, além de ensinar à população a nova escrita.
Línguas oficiais
De acordo com o censo de 2016, cazaques compõem cerca de dois terços da população, enquanto que os russos somam 20% dos habitantes do país. Hoje, o cazaque e o russo são as línguas oficiais. Mas os anos sob domínio do governo soviético levou o russo a ser falado pela maioria do Cazaquistão – quase 94% dos mais de 18 milhões de cidadãos são fluentes na língua. A fluência em cazaque é de 74%.
Enquanto isto, a frequência de uso da língua depende da região. Províncias do Norte e centros urbanos influenciados pela Rússia, como Almaty e a capital, Astana, usam o russo tanto nas ruas quanto nos escritórios do governo. No Sul e Oeste, o cazaque é mais usado.
O cirílico é o alfabeto-base do russo e também foi adaptado para o cazaque durante o governo soviético. Na história, o cazaque fora escrito com os formatos árabe e latino. O lançamento do novo alfabeto, portanto, é uma volta ao passado anterior à influência soviética.
Essa transição já ocorreu há décadas em outras ex-repúblicas soviéticas. O Azerbaijão começou a introduzir livros didáticos no alfabeto latino no ano seguinte à dissolução da União Soviética, que ocorreu em 1991. Já o Turcomenistão seguiu pelo mesmo caminho a partir de 1993.
Mudança em etapas
A mídia estatal anunciou que o orçamento do governo para a transição dos próximos sete anos – dividida em três etapas – será de 218 bilhões de tenges (R$ 2,4 bilhões). Do total, cerca de 90% seriam investidos em educação.
A primeira etapa, entre 2018 e 2020, inclui a criação de um departamento governamental para coordenar a transição, a tradução de livros e outros materiais didáticos e o treinamento de professores. Na segunda, entre 2021 e 2023, a nova escrita será introduzida ao público e as diretrizes de ensino serão atualizadas. Na última, prevista para 2024 e 2025, ocorrerá a tradução de documentos oficiais e das notícias da mídia estatal, e será expandida ainda a campanha de “conscientização”.
Munalbayeva Daurenbekovna, diretora da Biblioteca Acadêmica Nacional, tem ministrado aulas abertas a bibliotecários e outros interessados na escrita latina. “Professores terão que estudar todos os dias durante um mês. Para as crianças, seriam necessárias apenas dez aulas, porque elas aprendem mais rápido que os adultos”, explica.
Sem um detalhamento dos gastos em cada rubrica, economistas têm tido dificuldade de mensurar os custos da empreitada. Os ministérios das Relações Exteriores, Educação e Cultura não responderam aos pedidos de comentários e esclarecimentos.
Escrita oficial
Um impacto difícil de medir seria a fuga de cérebros. “Se a reforma não for bem implementada, há grandes riscos de que pessoas altamente qualificadas que falam russo, incluindo alguns da etnia cazaque, considerem emigrar”, diz Eldar Madumarov, economista e professor da Universidade KIMEP, em Almaty. “Eles correm risco de perder boas oportunidades.”
Esse risco ficou evidente em fevereiro, quando o presidente Nazarbayev, bilíngue, ordenou que todas as reuniões de gabinete fossem realizadas em cazaque. Como o russo há muito tempo é a língua para os assuntos de Estado, o comando do governo por russos muitas vezes supera o de cazaques. Com isso, uma reunião transmitida pela TV mostrou oficiais com dificuldade de se expressar, alguns optando pela tradução simultânea.
Além disso, documentos de identidade, passaportes, leis e regulamentações – toda a papelada que governos precisam para funcionar – terá que ser traduzida. O governo anunciou que isto fará parte da terceira etapa da transição, mas não especificou o quanto irá custar, alerta Kassymkhan Kapparov, diretor do Departamento de Pesquisa Econômica do Cazaquistão, com base em Almaty.
Outra mudança ainda sem orçamento definido é a implementação do novo alfabeto pela mídia estatal. “Para se usar o novo alfabeto, será preciso treinar as pessoas primeiro, e então adaptar toda a infraestrutura de TI ao novo formato”, ressalta o especialista. “Para isso eles não deram uma estimativa…. Com base nas minhas projeções, o custo ficaria em torno de US$ 15 milhões e US$ 30 milhões (de R$ 56 a R$ 112 milhões)”.
E esses são números apenas para o setor público. “O setor privado teria que fazer isso por conta própria, obviamente. Poderia gastar o dobro, ou dez vezes”, diz Kapparov. “Isto depende do quão rígido o governo será; por exemplo, será exigida a mudança no período de um único ano? É possível que sim. Com nosso governo, nunca se sabe”.
Kapparov teme ainda que a população, especialmente os mais idosos, tenha dificuldade para ler e escrever com o alfabeto latino. Por isso, a comunicação no setor público talvez tenha que ser realizada em várias línguas.
“Isso pode ser chamado de “o ônus da língua”, porque todo documento do setor público teria que ser escrito em russo, cazaque e com o novo alfabeto cazaque… Para isso seria preciso empregar tradutores”, diz Kapparov, destacando que esse custo também não foi descrito no orçamento.
O especialista estima que a transição completa custaria em torno de US$ 1 bilhão (R$ 3,7 bilhões), acima do previsto pelo governo. Já o diretor do Centro para Pesquisa Macroeconômica do Cazaquistão, Olzhas Khudaibergenov, acredita que o montante não chegará a isso.
Khudaibergenov considera, por exemplo, que os custos da tradução de documentos serão inseridos no orçamento usual do governo. “As despesas reais serão apenas para programas informativos para apoiar a transição”, afirma. “Acredito que o orçamento anual não ultrapasse dois ou três bilhões de tenges (R$ 22 a 33 milhões) entre 2018 e 2025”.
Benefícios econômicos?
Kapparov diz que a transição do alfabeto é algo “difícil de vender” pelo governo e que não trará retorno direto em investimentos. Por isso, o processo “deveria ser visto mais como um programa de desenvolvimento social e cultural do governo”, completa.
Khudaibergenov concorda: “É mais uma questão de identidade nacional que estamos tentando encontrar, e estamos prontos para pagar por isso”.
Eldar Madumarov, da Universidade KIMEP, acredita que a economia possa sofrer uma desaceleração por conta das divisões políticas que surgirão da mudança na escrita. Enquanto alguns especulam que a decisão de Nazarbayev sinaliza o esfriamento da relação com a Rússia, acredita-se que ela também poderia enfraquecer as relações comerciais com as antigas repúblicas soviéticas.
Hoje até 10% do fluxo de comércio entre Rússia, Cazaquistão e Ucrânia ocorre pela conveniência da língua compartilhada, que de certa forma se traduz numa proximidade de cultura e mentalidade, diz Madumarov. Isto também significa que os cazaques que falam russo têm mais mobilidade econômica entre os países. Enquanto isto, o Azerbaijão e a Geórgia, nações não fluentes em russo, têm relações comerciais mais fracas com o Cazaquistão.
O exemplo turco
Por outro lado, ter um alfabeto latino significa estar mais integrado ao mundo ocidental, diz o especialista. A Turquia, por exemplo, fez a transição do alfabeto árabe para o latino em 1928, o que a levou a formar alianças com a União Europeia e travar negociações para se tornar um de seus membros – resfriadas recentemente.
A Turquia há muito é usada como exemplo de como a modernização da língua e dos sistemas legais elevaram sua posição a potência econômica, diz Barbara Kellner-Heinkele, especialista na língua e História turca. Mas ela afirma que esse progresso se deve, principalmente, à expansão da alfabetização e ao firme controle de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República da Turquia, no início do século 20.
A transição da Turquia para o alfabeto latino, que ocorreu em 1928, “foi realizada muito rapidamente”, mas na época poucos turcos podiam ler e escrever. Atatürk precisava de pessoas educadas para que seu país estivesse no mesmo nível que a Europa e os Estados Unidos, “e parte do impulso da educação foi o novo alfabeto”, explica Kellner-Heinkele.
Uma nação independente
A transição do Cazaquistão tem mais relação com o afastamento de seu passado soviético do que com educação ou economia, afirma a especialista. “É um argumento político mostrar que eles são um Estado independente, que são modernos, que são uma nação.”
Fazylzhanova Muratkyzy, linguista que trabalhou com o governo para criar o novo alfabeto, faz eco a essa afirmação e diz que muitos cazaques associam o alfabeto cirílico ao controle soviético.
Com isso, especialmente os jovens estão celebrando o novo alfabeto. Pesquisas feitas na última década pelo instituto linguístico do qual está à frente mostram que, em 2007, 47% dos jovens entre 18 e 25 anos apoiavam a mudança. Em 2016, a adesão nessa faixa etária saltou para 80%.
“É a escolha das pessoas, da nação. E o novo alfabeto está conectado aos nossos sonhos e ao nosso futuro”, diz Muratkyzy. “Isto mostra que nossa história independente (da Rússia) está finalmente começando”.
Apesar do custo adicional ao seu negócio, Kaipiyev, dono do Sa’biz, apoia integralmente a mudança. “Queremos nos conectar com a Europa e a América e com outros países. Isto vai nos ajudar a virar a página para o próximo capítulo”, explica.
Mas Kaipiyev não deve mudar o material de seu restaurante de imediato. “Acho que vou deixar assim agora”, diz Kaipiyev, depois de refletir por um momento. “Mudaremos quando as pessoas realmente puderem lê-lo”.
Com colaboração de Makhabbat Kozhabergenova e pesquisa adicional de Miriam Quick.