O turismo por razões médicas existe há décadas. Mas 2021 trouxe pela primeira vez o turismo de vacinação, que já acontece informalmente em diferentes destinos.
Enquanto o calendário brasileiro de imunização contra a covid-19 caminha a passos lentos e desorganizados, sem doses suficientes para toda a população, os EUA já vacinam inclusive adolescentes. Por isso mesmo, o movimento de turistas estrangeiros atrás das doses excedentes nos postos de vacinação americanos tem sido cada vez mais intenso.
No caso dos brasileiros, ele acontece após o cumprimento obrigatório de duas semanas de quarentena em outro país (geralmente México), para que sua entrada em território americano seja liberada.
Por enquanto, a determinação oficial do governo dos EUA é vacinar apenas cidadãos americanos e residentes. Mas, como comprovantes de residência não têm sido solicitados, muitos turistas estrangeiros (nossos conterrâneos incluídos) estão aproveitando para se vacinar nos Estados Unidos sem qualquer tipo de burocracia.
Escala mexicana
No México, esse “turismo da vacina” já vem acontecendo às claras desde o começo de março, com diferentes agências oferecendo pacotes com voos, acomodação e até traslados para centros de vacinação nos EUA e outros países. A prática não é oficial e nem garante voltar com o adesivo redondinho no braço – basta as autoridades americanas recrudescerem a fiscalização para frustrar os planos dos turistas da picada.
Quem se valeu das facilidades e ouvidos moucos desta fase inicial de vacinação, já está imunizado com benção do Tio Sam.
O carioca Pedro Augusto passou duas semanas em quarentena no México para poder entrar a trabalho em Porto Rico, ilha caribenha que é um estado independente americano. Ao chegar a Ponce, no interior da ilha, decidiu se vacinar. “O processo foi super simples. Agendei pelo site do Walgreens com o endereço do hotel, e compareci no local com meu passaporte brasileiro. Fui vacinado e já tenho a segunda dose agendada”, conta.
A paulistana Elena (que prefere não ter o sobrenome divulgado), assustada com a lentidão do processo de vacinação no Brasil, aproveitou o fato de estar em home office desde o ano passado e viajou para Cancún, no México, onde cumpriu catorze dias de quarentena em um hotel.
De lá, embarcou para a Flórida e conseguiu ser vacinada, também sem burocracias. Alugou um imóvel de temporada por cinco semanas em Orlando, e aguarda o dia de sua segunda dose para então voltar ao Brasil.
É um custo muito alto passar tanto tempo fora do Brasil com nossa moeda tão desvalorizada. Mas ainda acho que valeu a pena”, afirma.
A paulistana Thalita Toledo* (nome fictício a pedido da entrevistada), que passou por um tratamento oncológico durante a pandemia, resolveu embarcar para os EUA com o marido e as filhas para tentar a vacinação.
Confessa que foi uma decisão repleta de medos, da possibilidade de contaminação nos deslocamentos ao temor de voltar
para casa sem vacina. Mas conseguiram se vacinar em uma unidade federal em Miami sem problemas.
Não tínhamos nenhuma perspectiva de tomar a vacina aqui, uma vez que o governo brasileiro ignorou pacientes oncológicos, apesar da insistência dos médicos especializados”
Dilemas éticos
As viagens para vacinação contra a covid-19 em outro país trazem dilemas éticos. Turistas com dinheiro para “furar” a fila não resolvem a questão de saúde pública trazida pela pandemia. A própria OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou que não apoia vacinação de turistas.
Esta é mais uma das diversas camadas de desigualdade no controle e combate à pandemia como um todo.
Há pessoas com condições de viajar para outros países para se vacinar que, muitas vezes, nem são de grupos prioritários ou de maior risco. Mas a vacinação é uma estratégia coletiva de saúde pública, que depende de muita gente estar imunizada para funcionar”, afirma Vitor Mori, pesquisador na Universidade de Vermont (EUA) e membro do Observatório COVID-19BR.
Alguns cientistas destacam também que os próprios deslocamentos entre países podem contribuir para a disseminação do vírus. Mas a visão dos turistas é diferente.
Acho totalmente compreensível que uma pessoa que tenha os meios financeiros para tal vá atrás da sua vacina. O dilema ético maior está nos EUA retendo essas doses extras, que poderiam ser distribuídas a outros países”, diz Pedro Augusto.
Thalita Toledo* também diz que não vê dilema ético na atitude. “É claro que me sinto privilegiada. Fico constrangida em falar sobre isso, vendo a situação na qual nosso país se encontra”, desabafa. Mas acredita que os altos custos da empreitada valeram a pena e recomenda a outras pessoas em situação semelhante que façam o mesmo.
Movimento em outros países
As viagens atrás de doses de vacinas contra a covid-19 não são exclusivas de brasileiros e outros latino-americanos. Na Europa, a lentidão no processo em alguns dos países tem feito com que pessoas com dupla nacionalidade ou múltiplas residências se desloquem pelo continente tentando serem vacinadas mais rapidamente.
Cidadãos da Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Montenegro, Bulgária e Albânia têm cruzado a fronteira da Sérvia para serem vacinados em Belgrado. Alguns europeus com nacionalidade americana também viajaram aos EUA em busca de vacinação mais rápida.
Na Índia, há denúncias de diferentes agências de viagem oferecendo pacotes de “viagem de vacinação” para Londres e Nova York. As viagens de turistas para os Emirados Árabes (majoritariamente Dubai) com esse fim também têm sido frequentes.
Dubai lançou no ano passado uma campanha oferecendo doses de vacinas contra a covid-19 a estudantes e nômades digitais que se mudassem para lá por pelo menos um ano. Apesar de oficialmente vacinarem apenas residentes, há relatos de famílias ricas, políticos de países próximos e até de alguns membros da família real espanhola viajando ao emirado para se vacinar.
Distribuição desigual
Desde que as primeiras vacinas contra a covid-19 foram aprovadas, a aquisição e distribuição das doses tem sido bastante desigual no mundo. Enquanto alguns países monopolizaram as compras, nações mais pobres ainda enfrentam extrema dificuldade para conseguir suas doses.
“Há países, como os Estados Unidos, com vacina ‘sobrando’, enquanto em outros a vacinação para grupos prioritários mal começou. Há uma pressão muito grande nos EUA para que distribuam as doses da vacina Astra-Zeneca, que não pretendem usar na população local, para o consórcio Covax, liderado pela OMS, fazer a redistribuição”, explica Vitor Mori.
Como fica a indústria turística?
Alguns países já começam a reabrir fronteiras para turistas 100% vacinados, injetando novo ânimo no setor — e fazendo crescer também a procura pelas chamadas “vaccination vacations” no mercado de luxo.
“Há brasileiros comprando viagens que começam com 14 ou 15 dias no México e outros 45 nos EUA, para que haja tempo para as duas doses de vacina. Mas para isso é necessário um orçamento disponível que não inclui a maior parte dos turistas”, explica Mariana Aldrigui, pesquisadora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo e presidente do Conselho de Turismo da FecomercioSP.
O turismo representava mais de 10% do PIB mundial pré-pandemia. Perdeu mais de 62 milhões de empregos e cerca de US$ 4,5 trilhões em arrecadações no ano passado. Nada mais natural, portanto, que celebre os pequenos ganhos que começam a aparecer; mas é preciso cautela.
Não creio que o turismo de vacina alavanque o turismo internacional, já que a grande discussão é a abertura vinculada a algum tipo de segurança sanitária — seja vacina, testes ou ações de controle no destino”, afirma Mariana Aldrigui.
Anúncios de vacinação oficial de turistas em destinos como Cuba, Maldivas, Dubai em mais recentemente, Nova York, seguem sendo possibilidades, mas ainda sem estimativa de data para acontecer.
É muito difícil, em termos globais, que o turismo de vacina seja algo constante. Pontualmente, vai ajudar algumas empresas e destinos; mas são vacinação em massa e políticas nacionais adequadas que garantirão a retomada de toda a economia”