O Beco da Lama pulsa em cores vivas

A ação de grafite no Beco da Lama (rua Vaz Gondim, na Cidade Alta) já soma mais de dez dias de trabalho. Inicialmente o esperado era contar com a participação de apenas 30 grafiteiros da cidade – levando em consideração a quantidade de material de pintura que se poderia conseguir -, mas a repercussão ao projeto foi tamanha que atraiu a participação de muitos outros. Segundo um dos articuladores, o grafiteiro Miguel Carcará, pelo menos 48 artistas deixaram intervenções no local. Dentre os nomes, grande parte de jovens talentos, também estão os de veteranos como Fabio de Ojuara e Marcelus Bob, além de Guaraci Gabriel, que prometeu intervir com algo no espaço.
Segundo Carcará, a maioria dos trabalhos previstos já foi concluído. Um dos artistas jovens com pintura finalizada é Felipe, o FDK, de 23 anos de idade e cinco de grafite. Ele deixou em uma das paredes do Beco um índio. “Fiz um índio pelo símbolo de resistência que ele representa e por ver o Beco da Lama como um lugar de resistência, um lugar que por muitos anos se virou sozinho para se manter ativo”, diz FBK, descendente de índios e morador da Redinha. De traço realista, ele aproveitou a presença do grafiteiro paulista DicesarLove para pegar conhecimento. “Levar o realismo para a parede é complicado. E o Dicesar é um cara com bagagem nessa linha. Pude trocar uma ideia com ele e pegar algumas dicas, sim”.

DicesarLove está na fase final do seu grande painel sobre o universo de Câmara Cascudo. De traço realista, a obra estampa o folclorista fumando charuto rodeado de figuras da cultura popular brasileira, como Curupira, Saci, Iara, Mula-sem-cabeça, Lobisomem, Boi Bumbá. A pintura não está pronta mas é comum aparecer gente fotografando o trabalho. “Tem passado muito gente pelo Beco. Já vieram alemães, italianos. O pessoal passa, tira foto, pergunta sobre o trabalho. Todo dia tem essa movimentação”, comenta o artista. Ele tem na bagagem anos de trabalho com o grafiteiro Eduardo Kobra – mestre dos painéis gigantes no Brasil – , mas desde 2016 vem trilhando carreira solo, sendo bastante requisitado para projetos internacionais, principalmente em Dubai.

Dicesarlove diz que tem se dado muito bem com os artistas potiguares. Mas ele lembra que no início houve certa desconfiança por causa de alguns boatos. “Circulou uma história de que eu estaria ganhando dinheiro por esse trabalho aqui. Mentira. Para participar eu pedi passagem, alimentação e acomodação. Só. Não pedi cachê. Vim porque acredito no potencial do Beco de virar uma galeria à céu aberto capaz de mexer com a economia local e atrair turistas. Mas sempre soube que isso só seria possível com a participação dos artistas daqui”, conta o paulistano.

“Vim pra somar, mostra meu trabalho de grafite de grande escala, provocar uma situação que gere bons frutos pra mim, para os artistas daqui, para o bairro, uma situação em que todos ganhem. A galera tem me apoiado muito bem. Fiz mais amigos do que eu geralmente faço em outros lugares”.

Quem aparece para saudar DicesarLove no Beco é o artista Lennon Lie. “Gente boa ele, né?”,  conversa com a reportagem. Lennon é outro que está prestes a concluir sua intervenção. Filho de Marcelus Bob, ele está homenageando o pai e o folclorista Câmara Cascudo com um grafite que aproveita a arquitetura de uma fachada antiga, localizada praticamente em frente ao grafite de DicesarLove. “Vou fazer um reisado, deixando pai e Cascudo com a roupa da festa de reis”, explica o artista. Já Marcelus Bob, pioneiro da arte urbana em Natal, está deixando no Beco um grafite com seus famosos urbanóides.

Comerciantes percebem rotina mais movimentada

Embora algumas pinturas ainda estejam sendo concluídas, é certo que os traços e cores que estampam as paredes do Beco já estão causando impacto positivo na área. O trânsito de pessoas no local, por exemplo, está maior desde o início da ação. E quem confirma essa impressão é quem vive o Beco da Lama diariamente e há anos: os próprios comerciantes do lugar, que também estão conhecendo na prática o quanto a arte urbana é capaz de renovar espaços públicos.

Quem vive e circula pelo logradouro tem a oportunidade de conhecer, na prática, o quanto a arte urbana é capaz de renovar espaços públicos

Quem vive e circula pelo logradouro tem a oportunidade de conhecer, na prática, o quanto a arte urbana é capaz de renovar espaços públicos

“Já vi muito grafite pela cidade, mas conhecer de perto mesmo, eu vim conhecer agora”, confessa a comerciante Jaciara, da loja Mundo Místico – antiga Casa de Orixás, de Josias Gomes, instalada no Beco da Lama há mais de 50 anos.

A fachada do estabelecimento ganhou a intervenção dos artistas Gil e Nec, que trabalharam levando em consideração a história do lugar, o que justifica as figuras dos quatro elementos, o Exu, alguns símbolos do equilíbrio e as folhas de mamona.

Jaciara está gostando da movimentação artística no Beco, reconhece que o trânsito de pessoas na área aumentou, mas acha que ainda é cedo para saber se daqui pra frente o fluxo de gente continuará no mesmo patamar. “O Beco já foi bastante frequentado. Lembro que era comum os políticos passarem por aqui, beberem a meladinha do Nazi e ficarem discutindo política. Loja como a nossa, de produtores de Umbanda, tinham cinco aqui no Beco, fora os outros tipos de comércio. Na verdade os pequenos comércios daqui surgiram depois do incêndio do Mercado Público [1967]. Os pessoal ficou sem lugar então veio abrir negócios aqui”, conta. “Com o grafite estamos vendo um novo movimento. O trânsito de pessoas está bom. Só não sei se vai durar muito, se mais um ou dois meses e depois volta ao que era antes. Com a cobertura da mídia atrai visitantes. Mas e depois? A gente sabe que os natalenses gostam de uma modinha”.

Seu Manuel, vendedor de castanhas com 48 anos de Beco, pensa de forma semelhante. “Já teve época que os bares daqui viviam cheios. Os funcionários da prefeitura e do TJRN sempre passavam por aqui. O Beco sempre foi muito falado, mas parece que agora está mais por causa dos grafites. Isso tem atraído gente que dificilmente viria na Centro”, diz o comerciante que teve seu carrinho repaginado pelos grafiteiros. Ele espera que a ação no lugar ajude a dar uma crescida no movimento da Cidade Alta como um todo.

Seu Chico, do Bar do Chico, com 43 anos de atividade no Beco, é outro que compartilha do mesmo pensamento. “Estou gostando do que estou vendo. Não conhecia muito de grafite e agora estou podendo ver como são feitos. O trabalho está ficando bonito. Por causa da ação tem passado bastante gente por aqui. Bora ver se vai ser assim daqui pra frente”.

Dos transeuntes, Dona Lúcia foi uma das poucas que não fez foto. Ela diz que frequentou bastante o Centro na época que o comércio estava forte, mas que hoje em dia só raramente. Ao notar o movimento no Beco ficou curiosa. “Esse é o tal do Beco que estão pintando né? Tá ficando bonito. O pessoal vai fechar pra carro aqui? Se fechar pra botar mesinha vai ficar bom”, comenta.

Tribuna do Norte

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