Depois de quatro overdoses, um acidente de carro que o deixou em coma, um infarto e outras tantas comorbidades, além de um ano inteiro em reabilitação seguido por algumas recaídas, o ex-atacante e comentarista esportivo Walter Casagrande Jr. comoveu o Brasil ao anunciar, na final da Copa do Mundo da Rússia, em 2018, que pela primeira vez tinha permanecido sóbrio um Mundial inteiro. Para ele, ali, a sobriedade plena fora alcançada. A parte mais difícil da recuperação, porém, ele conta agora.
Em “Travessia” (Globo Livros), escrito com o amigo e jornalista Gilvan Ribeiro, Casagrande detalha o processo de ressocialização do dependente químico. Uma travessia que, no caso dele, teve luta, um namoro midiático com a cantora Baby do Brasil, a reaproximação com amigos roqueiros que também lidaram com seus vícios, como os titãs Paulo Miklos e Nando Reis. Tudo contado, por ele e pelos personagens envolvidos no livro, de peito aberto, como esta conversa por Skype, de seu apartamento em São Paulo.
Por que a ressocialização é ainda mais difícil que a reabilitação?
Enquanto eu estou internado, estou protegido. Não preciso me preocupar se vou ver alguém bebendo, se ficarei eufórico, se verei movimento de droga. Quando você sai, a coisa vira. A escalada para sair do buraco e voltar à sociedade é muito grande.
É uma parte do processo menos abordada em filmes e séries, por exemplo.
Exatamente. O filme do Elton John (“Rocketman”) é fantástico, foi muito bom pra mim. Mas acaba e você não sabe as dificuldades que ele teve depois que saiu da clínica. Todo mundo pensa sempre em contar a parte errada e pula pro final feliz. Não tem final feliz. Eu alcancei minha sobriedade plena na Rússia, mas não é um final feliz, foi um momento feliz. O dependente químico vai ser dependente até o fim da vida, então agora minha responsabilidade é me manter feliz e sóbrio.
O livro aborda suas muitas relações com roqueiros brasileiros. Sente que tiveram uma trajetória parecida?
O meu desenvolvimento como jogador foi ao mesmo tempo que o deles como músico de rock. A maioria tem a mesma idade que eu, a turma de Titãs, Plebe Rude, Ira!, Barão, Inocentes… O mundo bateu na nossa cara de pessoa pública ao mesmo tempo, e nos ligamos naquela década de 1980, quando surgiu o rock brasileiro mesmo e o Casagrande jogador. Hoje, ficamos felizes pra caralho por estarmos bem, trabalhando. Eu presenciei o drama do Nando, do Miklos, do [guitarrista Luis Sérgio] Carlini, do Kiko [Zambianchi], a dificuldade do Nasi, muitos do Barão… E eles, o meu.
Uma ex-namorada conta no livro que você fica entendiado com muita facilidade. Como tem sido na quarentena?
Eu estou sem sair de casa. Só saio pra fazer o “Bem, amigos!” no SporTV e volto logo depois. Acompanho a GloboNews desde que começou a pandemia, depois quando começou essa tragédia política em que nos encontramos. Faço lives toda quinta e sábado, me mantenho atualizado. Preenchi muito bem os meus dias pra não dar tempo de a minha cabeça ficar de saco cheio. Eu não senti tédio, mas tive vontade de fumar, e eu não fumo mais. Se eu entrar no barulho da minha cabeça e fumar, fodeu. Aí ligo a TV, pego um livro e passa batido. Vou sair desta pandemia bem evoluído na questão do tédio, ansiedade e impulsividade.
As redes sociais podem ser bem cruéis, por conta do anonimato. Como lida com elas?
Tem gente que não acredita que a dependência química é uma doença, que as pessoas podem se recuperar. Para elas, a Terra é plana, então não tem diálogo, não dou atenção. Mas os ataques cruéis e o preconceito machucam. Atingem a alma da pessoa. Não corta a pele, não sangra, mas entra uma faca na alma. É uma cicatriz que não fecha. Me fez muito mal, acredito que faça ainda. Então, quem cuida do meu Instagram, por exemplo, é o meu filho do meio, Leonardo. Não vejo comentários. Se olho dois comentários, sempre tem um me chamando de drogado.
A abstinência sexual, por conta da religião da Baby, foi fundamental para o namoro não ter dado certo?
Ele deu certo, ela foi e é muito importante para mim. E a abstinência foi um dos fatores mais tranquilos. Eu assumi isso. Mas somos muito diferentes, ela é muito pilhada, vai dormir às 4h da manhã, e eu preciso ter oito, nove horas de sono para não ficar indisposto. Além disso, ela fala no livro que gosta de grudar, e eu sou o contrário. Mas temos um amizade ótima, nos falamos por telefone. O problema é que é quase impossível sair como amigo dela para jantar, ou já vão encher o saco, paparazzi…
Você foi um dos líderes da Democracia Corinthiana, que lutou pelas Diretas Já. E agora volta a se mobilizar em defesa da democracia, entre outras bandeiras. Como é sua relação com a política hoje?
Recentemente, formei esse grupo chamado Esporte pela Democracia, com Raí, Joanna Maranhão, Ana Moser e outros. Um grupo antirracista, pela democracia, a favor da proteção das terras indígenas e dos indígenas, contra a homofobia, contra o feminicídio, contra a prostituição infantil… É muito ativo, temos mais de 2 mil assinaturas no nosso manifesto virtual, Caetano Veloso, Chico Buarque estão lá… Tenho visto a torcida do Corinthians na Paulista pela democracia, ela sempre foi política, a Gaviões nasceu em 1969 contra a ditadura. Agora… estamos em pandemia, acho justo e sou a favor deles todos, mas manifestação neste momento não dá pra apoiar. E também não apoio conflito, violência, eu sou paz e amor.
O Esporte pela Democracia defende bandeiras que muita gente associa à esquerda…
No grupo, não tem isso. Não somos ligados a partidos, não tem político nenhum lá. Eu não consigo entender. Necessariamente você precisa ser de esquerda para ser contra barbáries da sociedade? Fui filiado ao PT, mas hoje me defino como sem partido. Não sou mais radical como era antigamente. Sou a favor e contra isso que te falei. Não preciso seguir partido pra isso.
Entre as pautas progressistas, porém, você não apoia a descriminalização das drogas.
A droga quase me matou. Eu não posso defender a liberação de algo que quase me matou. Mas também não sou contra. Eu não sou obrigado a tomar um lado. Só faço aquilo que quero, democracia é isso.
Serviço
“Travessia” Autores: Walter Casagrande Jr. e Gilvan Ribeiro.
Editora: Globo Livros. Páginas: 314. Preço:
R$ 49,90.