“Isso não é o Iraque ou a Líbia, isso é outra coisa.”
“Todos os dias mais de 30 pessoas morrem, então…seja bem-vindo à Turquia, mas leve o tempo que precisar, dois ou três dias, para decidir se quer entrar na Síria. Eles podem matar você”.
Isso foi o que Nadir, um ex-professor sírio de basquete que se transformou em traficante de pessoas, disse ao fotojornalista espanhol Ricardo Garcia Vilanova, que queria cruzar ilegalmente a fronteira para a Síria com o colega jornalista Javier Espinosa, no final de 2011.
Meses depois, grupos extremistas tomariam o controle da revolução contra Bashar al-Assad e começariam um conflito que mais tarde se tornaria um dos maiores desde a Segunda Guerra Mundial, com mais de 500 mil mortos e seis milhões de refugiados.
Até chegar a esse momento, Garcia Vilanova já havia começado a jornada que culminaria com sua prisão pelo grupo autodenominado Estado Islâmico (EI).
Esta é a história dele:
Primeiro contato
Quando os grupos jihadistas ganharam mais poder na Síria, ser detido por um deles – por algumas horas ou dias – tornou-se normal.
Com bons contatos na área, entretanto, era possível trabalhar sem problemas a poucos metros de distância dos combatentes, já que sua influência na cidade era compartilhada com o Exército Livre da Síria (FSA, na sigla em inglês), dominante na época.
O ponto de virada veio quando o Estado Islâmico começou a ganhar terreno e poder.
Minha primeira experiência direta com eles foi em meados de 2012 na cidade de Aleppo, quando ainda não estavam reunidos em um só grupo e eram uma mistura de sírios e estrangeiros.
Naquela época eu estava dormindo na casa de um amigo, Yasser, o único médico habilitado a ficar no hospital quando a cidade foi sitiada pelas tropas de Assad, em meio a pesados bombardeios e conflitos.
Eu estava morando na cidade de Aleppo havia vários meses, então meus contatos eram fortes o bastante para eu não ter que me preocupar com o EI, ou pelo menos era assim que eu pensava.
Até que, uma noite, eles apareceram na casa de Yasser e me levaram embora.
Eu fui sequestrado e mantido por eles durante 11 dias.
O FSA ainda era muito poderoso dentro da cidade, então eles se comunicavam com o EI, exigindo que me deixassem ir – ou seriam mortos.
Eu fui libertado e fiquei em Aleppo por mais três semanas para terminar o trabalho que estava fazendo.
Tensão
Em 2013 fui a Deir Zor – a maior cidade da parte oriental da Síria – com o colega jornalista Javier Espinosa.
Nós estávamos com o FSA, mas, durante os dias em que ficamos lá, o equilíbrio de poder começou a se inclinar em favor do EI.
Para chegar à cidade, tivemos que passar por mais de meia dúzia de postos de controle.
Ouvimos histórias de sequestros e testemunhamos combatentes do EI atacando um pequeno ônibus cheio de pessoas.
A prisão
Passamos três semanas na cidade antes de tentar sair, em um veículo do FSA, com quatro guardas armados.
Os combatentes do EI simplesmente nos pararam em um dos postos de controle e nos levaram para um prédio próximo.
Foi onde ficamos os primeiros 15 dias dos oito meses em que fomos mantidos em cativeiro.
Ao longo desse período, passamos por várias prisões do EI no norte da Síria, onde pessoas eram diariamente torturadas e assassinadas.
Era o novo universo delirante do EI, onde uma criança levava choques elétricos por fumar ou uma simples recepcionista do hospital era torturada até a morte.
Em nossas prisões, entramos em outro nível de alienação desumana e de sadismo, e, depois de vários meses, finalmente encontramos o restante dos reféns ocidentais.
Os outros
Eu tinha uma amizade especial com um deles – nos conhecíamos desde a guerra da Líbia, em 2011, e na Síria compartilhamos diversas viagens.
No dia anterior ao seu rapto, estávamos juntos em Aleppo. Eu havia decidido ficar mais alguns dias e ele decidiu ir embora.
No dia seguinte, recebi uma ligação de um amigo dele dizendo que ele não havia chegado ao destino planejado.
De início, não dei muita importância, pois esperávamos que ele aparecesse em alguns dias – o que não era tão incomum na Síria naquela época.
Agora lá estava ele, naquela cela comigo.
Depois, foi morto pelos nossos sequestradores.
Libertação
O dia da minha libertação foi tão surreal quanto todos os meses que passamos com o EI.
Eles levaram a mim e a Javier para a fronteira turca e ficaram para trás enquanto nós dois avançávamos.
Quando os guardas da fronteira turca nos viram, atiraram em nós – suponho que pensando que éramos jihadistas tentando atravessar ilegalmente.
Nenhum de nós duvidava de que era melhor arriscar ser baleado do que voltar com aqueles lunáticos do EI.
A história terminou em uma cena delirante, com um funcionário da fronteira turca querendo nos multar por entrar ilegalmente no país.
Nós nunca pagamos a multa.
Os tentáculos do EI
Após minha libertação, decidi continuar o trabalho fotográfico que comecei em 2011 – mas isso não era mais sobre a revolução, era sobre o EI.
Essa organização virou o maior inimigo.
Seus tentáculos já estavam em vários países e ela controlava três capitais em seu chamado califado – Sirte, na Líbia, Mossul, no Iraque, e Raqqa na Síria.
Eu fotografei os conflitos nessas três cidades, assim como em Sinjar, no Iraque, Kobane e Tall Mar, na Síria, e em outras, além do êxodo em massa de pessoas nos últimos sete anos.
Esta é a razão pela qual, na minha quarta viagem à Síria este ano, decidi acompanhar a BBC para ver homens suspeitos de serem dois dos “Beatles” (uma célula de militantes do Estado Islâmico composta por quatro homens de Londres que eram responsáveis por vigiar e executar reféns estrangeiros).
‘Os Beatles’
Nos últimos anos consegui fotografar e conversar com jihadistas árabes e europeus, com mulheres européias que decidiram deixar suas vidas na Itália, Alemanha ou França para se juntar ao EI – mas essa oportunidade de fotografar e conversar com Alexanda Kotey e El Shafee Elsheikh era nova.
Nos meus anos de cobertura do conflito, vi jihadistas que deram a vida por algo em que acreditavam, mas também vi muitos tentando fugir de barco nos últimos dias de luta em Sirte – o próprio primo de Baghdadi (homem autointitulado Califa, chefe de estado e monarca absoluto teocrático, do Estado Islâmico) tentando escapar de Mossul – ou centenas deles em ônibus saindo de Raqqa.
Kotey e Elsheikh, que deveriam ser a elite do EI, tentaram salvar suas vidas traindo suas próprias convicções e tentando fugir para a Turquia.
Nem todo mundo é capaz de morrer da maneira que deveria viver.
Estes são os mais covardes e desprezíveis de todos.
A guerra traz à tona o pior e o melhor das pessoas, porque os códigos de conduta que estabelecemos em uma sociedade normal, que incorpora leis e castigos para aqueles que não atendem a esses padrões, são destruídos.
Não é que as guerras nos transformem, é que elas simplesmente nos deixam mostrar como realmente somos.
Julgamento
Ricardo Garcia Vilanova acompanhou o correspondente da BBC Quentin Somerville à Síria e conseguiu confrontar os dois homens que acredita que o fizeram refém, que torturaram e mataram pelo menos 27 outros ocidentais.
A dupla (Kotey e Elsheikh), que foi capturada em janeiro pelas forças curdas apoiadas pelos EUA, se recusou a responder às perguntas dele e encerrou a entrevista imediatamente.
Não está claro onde os dois serão julgados – mas, caso os EUA os extraditem, eles poderão encarar a pena de morte.
Garcia Vilanova, porém, não é a favor da pena de morte.
Ele defende que eles passem o resto de suas vidas na prisão, nas mesmas condições a que submeteram as suas supostas vítimas.
BBC