O caminho da proposta de reforma da Previdência enviada pelo governo Bolsonaro ao Congresso até uma eventual aprovação é longo.
O rito legislativo de qualquer matéria que modifique a Constituição, como é o caso, exige que ela seja aprovada pela Câmara e pelo Senado por pelo menos três quintos dos parlamentares em cada Casa e em dois turnos de votação.
Caso sofra alteração pelos senadores depois de passar pelo crivo dos deputados, a PEC volta para nova análise na Câmara.
A expectativa do governo é que a proposta seja votada ainda antes do recesso de julho do Congresso.
Esse prazo, contudo, pode se alongar caso o governo tenha dificuldade para arregimentar uma ampla base de apoio entre os parlamentares – o que pode ser alimentado, por exemplo, por crises políticas como a que levou à demissão do ministro Gustavo Bebianno ou pela própria natureza da proposta, considerada abrangente, mais ambiciosa que a apresentada pelo presidente Michel Temer e com algumas mudanças polêmicas de regras.
Conheça, a seguir, quatro desses pontos sensíveis, que podem dividir deputados, senadores e a opinião pública durante a tramitação da PEC 06/2019:
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL AO IDOSO
As mudanças propostas para o BPC (Benefício de Prestação Continuada) estão entre as mais polêmicas do texto apresentado nesta quarta-feira.
Hoje, idosos a partir de 65 anos em situação de miserabilidade – de acordo com a lei, aqueles com renda média familiar per capita de até um quarto de salário mínimo – têm direito a receber um salário mínimo por mês.
O último Boletim Estatístico da Previdência, com dados de dezembro de 2018, mostra que 2,05 milhões de pessoas recebem hoje esse benefício, que custa à Previdência cerca de R$ 1,9 bilhão por mês.
A PEC propõe que o BPC para o idoso passe a ser “fásico”: o valor de um salário mínimo seria pago apenas àqueles com mais de 70 anos, e pessoas com idade de 60 a 69 anos teriam direito a receber R$ 400.
Adriane Bramante, presidente do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), lembra que a proposta de aumento da idade de acesso ao BPC para 70 anos já constava na primeira versão da reforma proposta por Temer – e foi abandonada durante a tramitação.
“A PEC 287 já trazia isso inicialmente, mas houve grande comoção social (e a medida foi descartada).”
A diferença, desta vez, é a assistência aos idosos que ainda não atingiram a idade de acesso – os R$ 400, que ampliariam a cobertura do benefício.
Um detalhe importante, entretanto, é que a PEC prevê apenas a mudança na idade de acesso. O pagamento aos idosos na faixa dos 60 anos seria normatizado separadamente por meio de um projeto de lei.
“Dessa forma, você tira a proteção social (daqueles com menos de 70 anos) da Constituição. Esses R$ 400 não estão vinculados a nenhum indexador, não existe uma regra que estabeleça um reajuste anual pela inflação, por exemplo.”
“Em alguns anos os R$ 400 correm o risco de virar R$ 100 (porque perderam o poder de compra)”, pondera a advogada.
Para Marcelo Medeiros, pesquisador visitante na Universidade Princeton (EUA), elevar o tempo mínimo de contribuição para acesso a aposentadoria de 15 para 20 anos ao mesmo tempo em que se mudam as regras do BPC, como prevê a proposta, é injusto e pouco compatível com a realidade do mercado de trabalho brasileiro, em que predomina o trabalho informal.
“Uma reforma não pode ser feita sem conhecimento do mercado de trabalho brasileiro. Historicamente, cerca de metade dos trabalhadores está no setor informal, não contribui. Tempo de contribuição de 20 anos sem a válvula de escape do BPC é muito cruel com os pobres”, afirma o sociólogo, especialista em estudos sobre desigualdade social.
Para ele, uma reforma da Previdência que protegesse a parcela mais vulnerável da população deveria poupar os aposentados que recebem um salário mínimo. “É importante que o mínimo seja de 15 anos para quem vai se aposentar no piso, podendo ser mais alto para quem terá aposentadorias maiores. E que o BPC fique como está. O Temer cedeu nesse ponto, possivelmente Bolsonaro também cederá”, diz.
O BPC também é pago a pessoas com deficiência – nesse caso, a regra de acesso não muda. Assim como nos demais pontos da proposta, a mudança não afeta direitos adquiridos. Ela só vale para novos beneficiários.
Felipe Bruno, líder de Previdência da consultoria Mercer no Brasil, ressalta que a mudança no BPC e no abono salarial – que passa a ser pago apenas àqueles que recebem até um salário mínimo, e não mais até dois – representam, de acordo com as contas apresentadas pelos técnicos do governo, uma economia de R$ 182,2 bilhões em dez anos.
Isso representa 17% do total da economia prevista com a PEC da “Nova Previdência”, de pouco mais de R$ 1,07 trilhão.
“Esse é um tema muito sensível. A mudança na regra pode trazer um peso negativo para a percepção pública (sobre a reforma) e dificultar a tramitação.”
FIM DA MULTA RESCISÓRIA E DO DEPÓSITO DE 8% DO FGTS PARA APOSENTADOS
Durante a apresentação da proposta nesta quarta-feira, os técnicos da Previdência expuseram duas medidas formuladas para “desonerar o empregador” – ou seja, para reduzir o custo dos trabalhadores para as empresas.
Uma delas prevê o fim da multa rescisória de 40% sobre os depósitos do FGTSpara os trabalhadores que já estiverem aposentados. A outra extingue a obrigatoriedade por parte das empresas de recolher o equivalente a 8% do salário dos funcionários para o FGTS para os empregados aposentados.
Na prática, o fim da multa rescisória tornaria mais barata a demissão dos aposentados que ainda estão na ativa – um contingente que chega a 1,4 milhão de pessoas, conforme os dados da Secretaria da Previdência referentes a 2017 levantados a pedido da BBC News Brasil.
Isso porque, quando um trabalhador com carteira assinada se aposenta e segue trabalhando, ele tem direito de sacar o saldo total do fundo de garantia, mas seu empregador continua sendo obrigado a pagar 40% do valor que depositou no FGTS como indenização caso mande o funcionário embora.
Para pessoas que estão há 20 ou 30 anos na mesma empresa, essa multa pode atingir valor considerável.
O professor Luís Eduardo Afonso, da FEA-USP, diz que é difícil fazer uma estimativa de impacto da medida, que criaria uma “dualidade no mercado de trabalho”.
De um lado, ela poderia, por exemplo, estimular as pessoas a se aposentarem mais tarde – para postergar o momento em que sua demissão ficaria mais barata para a empresa. De outro, poderia ser um incentivo para que algumas empresas “segurassem” os funcionários mais velhos até que eles se aposentassem.
Bruno Ottoni, pesquisador do Ibre-FGV e do IDados, pondera que a medida poderia ainda estimular contratações de aposentados, justamente porque a demissão ficaria mais barata.
“O custo de saída afeta a entrada”, ressalta o economista. Isso porque, quanto mais restritiva é a legislação trabalhista quanto à demissão, diz ele, mais os empregadores tendem a procurar modalidades alternativas de contratação para evitar os custos altos para mandar o funcionário embora.
Para Ottoni, da Mercer, esse é um dos pontos que devem gerar maior polêmica nas discussões no Congresso, ao lado do BPC e das mudanças de alíquotas de contribuição para funcionários públicos.
A questão do depósito dos 8% do FGTS também vai gerar barulho, diz Bramante, do IBDP.
Isso porque, na prática, ela reduz automaticamente o salário dos aposentados que seguem ativos no mercado formal.
Como o contrato de trabalho não tem relação com a vida previdenciária, explica a advogada, mesmo depois que um empregado dá entrada no INSS, caso continue trabalhando, a empresa tem de manter os depósitos mensais para o FGTS de 8% sobre o salário do funcionário.
A diferença, nesse caso, é que o trabalhador aposentado tem direito de sacar todo mês o valor depositado – que acaba virando um complemento de renda.
PENSÕES POR MORTE
A proposta iguala as regras para o serviço público e privado e tem potencial para reduzir de forma significativa o valor das pensões por morte.
Para o Regime Geral, o pagamento é de 100% do benefício – ou seja, uma viúva de um aposentado que recebia R$ 2.000 tem direito a esse mesmo valor. Entre os funcionários públicos, a pensão é de 100% do benefício até o teto do INSS (que é de R$ 5.839,45), mais 70% do que passar desse valor.
Ou seja, alguém elegível a pensão por morte de um servidor que recebia R$ 10 mil teria direito a cerca de R$ 8.751,8 – R$ 5.839,45, que é o teto do INSS, mais 70% de R$ 4.160,55.
Com a mudança, todas as pensões passariam a ser calculadas da seguinte forma: 50% do valor da aposentadoria que o segurado recebia (ou à qual teria direito, se morrer antes), com mais 10% por cada dependente, até o máximo de 100% do teto do RGPS.
Com a nova metodologia, poderia haver pensões equivalentes a menos de um salário mínimo.
Bramante lembra que a regra já constava na Medida Provisória 664, proposta no governo Dilma Rousseff, que endurecia o acesso às pensões por morte – e foi descartada na versão final, sancionada em 2015.
Na proposta atual, diz a advogada, pode haver um achatamento ainda maior da renda por causa da nova regra para a acumulação de benefícios.
Hoje é permitida a acumulação de diferentes tipos de regime, como pensão e aposentadoria. Na nova versão, o segurado deve escolher o benefício de maior valor e receber apenas um percentual do outro.
Um exemplo: se uma mulher com salário de R$ 2.000 ficasse viúva do marido que recebia R$ 2.500 de aposentadoria, ela teria direito, pelas regras atuais, a R$ 4.500 de benefício.
Com a mudança, pela ótica da pensão, ela teria direito a 50% da aposentadoria do marido (caso não tivesse filhos) – ou seja, R$ 1.250.
Por conta da alteração nas regras para acumulação de benefícios, entretanto, esse não seria o valor final que ela receberia, mas apenas um percentual sobre os R$ 1.250.
“Essa mudança deve afetar principalmente mulheres, que muitas vezes são maioria entre os pensionistas”, diz a advogada.
A reforma não afeta aqueles que recebem pensão hoje, mas, para se ter uma ideia do tamanho e do perfil desse grupo, eles são, no Regime Geral, 7,7 milhões de beneficiários, que recebem em média R$ 1.100.
No setor público, de acordo com o Anuário Estatístico da Previdência Social de 2017, são 300,9 mil pensionistas, sendo 271,9 mil mulheres. O valor médio do benefício era de R$ 5.200 para pensionistas de servidores do Executivo, R$ 8.200 no Judiciário e R$ 21 mil no Legislativo.
ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS PARA O SERVIDOR PÚBLICO
Uma das grandes novidades da PEC apresentada na quarta é a previsão de alíquotas progressivas de contribuição previdenciária, tanto para o setor privado quanto para o público.
Hoje, os contribuintes do INSS pagam algo entre 8% e 11% de todo o salário, a depender do nível de rendimento.
Esse modelo seria substituído por uma tabela cujas alíquotas incidem sobre diferentes faixas da remuneração, como no imposto de renda. Na prática, as alíquotas efetivas variam de 7,5% para quem recebe até um salário mínimo a 11,68% para quem ganha a partir de R$ 3.000.
Uma pessoa com salário de R$ 1.250, por exemplo, pagaria 7,5% sobre o equivalente ao salário mínimo, que é R$ 998, e 9% em relação aos outros R$ 252 – com uma alíquota efetiva de 7,8%.
A diferença para o funcionalista público é que, para os servidores que têm direito a se aposentar com salário integral hoje – aqueles que ingressaram no serviço antes da reforma realizada em 2003 – estarão sujeitos a alíquotas maiores, que poderão chegar a 22% para os que recebem mais de R$ 39 mil.
Atualmente, os servidores públicos admitidos até 2013 e que não aderiram à Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp) pagam 11% sobre todo o vencimento. Quem aderiu ao sistema complementar paga 11% até o teto do regime geral.
Assim, na prática, a mudança vai significar uma redução do salário líquido para os funcionários públicos com remuneração mais alta.
“O servidor ficou louco da vida (com a proposta)”, diz Bramante.
Se, de um lado, a mudança na regra deve enfrentar forte resistência da categoria, ela “está em conexão com a tentativa do governo de fazer com que a reforma seja aceita pela sociedade”, diz Ottoni, da Mercer.
Durante a apresentação da PEC, os técnicos ressaltaram mais de uma vez que, com a reforma, quem ganha mais passaria a pagar mais.
“Minha alíquota de contribuição vai aumentar, eu vou ter que trabalhar por mais tempo, mas a mudança é importante para tornar a Previdência sustentável no futuro”, destaca Afonso, da FEA-USP.
“A proposta tem uma série de pontos positivos, e o das alíquotas progressivas é um deles”, concorda Ottoni.
Nesse sentido, a opção do governo de não apresentar uma proposta para a aposentadoria dos militares na PEC foi criticada por especialistas, já que a ideia da reforma é ser abrangente e exigir a “cota de sacrifício” de cada um dos diferentes setores da sociedade.
Segundo o Ministério da Economia, um projeto de lei com alteração do sistema de proteção social das Forças Armadas será enviado ao Congresso até o dia 20 de março.
*Colaborou Lígia Guimarães, da BBC News Brasil em São Paulo