Enfermeira chegou a dar dinheiro para criadora de perfil falso, que enviou até flores e alianças para propor casamento.
Desde a primeira vez em que conversou com um rapaz que dizia se chamar Álvaro, a enfermeira Luana*, de 30 anos, se encantou pelo homem. Eles se conheceram em um aplicativo de relacionamentos, no início de janeiro deste ano. Em menos de dois dias, passaram a se considerar namorados, mesmo sem nunca terem se encontrado pessoalmente.
Luana conta que se apaixonou por Álvaro por considerá-lo um homem carinhoso, bonito e bem-sucedido. Ele dizia que era defensor público recém-concursado, que havia nascido no Rio Grande do Sul e tinha se mudado havia poucas semanas para Macapá (AP), onde a mulher mora.
“Eu acreditava em tudo o que ele me dizia. Não procurei informações sobre ele, porque estava muito encantada com as atitudes dele comigo”, relata Luana à BBC News Brasil.
Em uma semana de conversa, ela recebeu flores e declarações de amor por meio do WhatsApp. Em outro momento, a enfermeira emprestou R$ 600 para Álvaro, pois ele disse que precisava do valor com urgência.
Dias depois, ela foi pedida em casamento pelo homem. Mesmo sem nunca tê-lo visto, pois ele costumava usar diferentes desculpas para não encontrá-la, a enfermeira aceitou.
O homem perfeito, aos olhos de Luana, nunca existiu. Álvaro era um fake, expressão utilizada para denominar perfis falsos na internet.
A história acabou na polícia. Uma jovem de 24 anos era a responsável pelo perfil. As investigações apontaram que a suspeita enganou outras dezenas de mulheres de Macapá.
Na internet, é comum encontrar relatos de homens e mulheres que foram enganados por perfis falsos. Algumas histórias viraram casos de polícia. Outras, apenas deixaram marcas na vida de quem se envolveu em um relacionamento com alguém que nunca existiu.
A psicóloga Ana Sandra Fernandes explica que há pessoas que se envolvem com perfis virtuais, sem questionar se aquela pessoa realmente existe, por idealizar um relacionamento perfeito. “Vivemos uma cultura muito influenciada por contos de fadas. Isso influencia muitos relacionamentos, porque muitas pessoas procuram viver algo perfeito.”
“Nos relacionamentos reais, você se envolve com pessoas que têm defeitos. Em relações virtuais, as pessoas podem fantasiar uma perfeição, sem transparecer os problemas. Por isso, em muitos casos, a pessoa está tão imersa naquele suposto conto de fadas que não percebe muitas incoerências na história daquele perfil falso. A vítima acaba aceitando que aquilo é real e embarca naquela história”, explica Fernandes.
PEDIDO DE CASAMENTO
Quando Luana baixou o aplicativo de relacionamentos para conhecer algum rapaz, ela estava solteira havia seis meses, após terminar um namoro de dois anos. Anteriormente ao último relacionamento, a enfermeira havia sido casada por cinco anos. “Nunca tinha utilizado nenhum aplicativo assim, mas as minhas amigas insistiram e decidi testar”, diz.
Logo no primeiro dia em que usou o aplicativo, ela conheceu Álvaro. “Ele me disse que tinha 35 anos e estava em busca de um relacionamento sério”, conta.
A primeira surpresa da enfermeira foi o pedido de namoro, poucos dias após conhecer o rapaz. “Uma mulher levou um buquê de flores no meu serviço. Ela não perguntou meu nome, nem nada. Só entregou e foi embora. Em seguida, o Álvaro me ligou, perguntando se eu havia gostado do presente. Ele me disse que era um pedido de namoro. Eu agradeci e aceitei.”
“Fiquei encantada com aquele buquê, pois nunca havia recebido nenhum. Mas me assustei com o pedido de namoro, porque nos falávamos há pouco tempo. Pedi a ele para que nos conhecêssemos pessoalmente o quanto antes. Então, ele me disse que nos veríamos no dia seguinte”, relata Luana.
Apesar do combinado, eles não se encontraram no dia seguinte, um sábado. “Ele me ligou para avisar que estava passando mal e não poderíamos sair. Eu disse que poderia ajudá-lo, pois sou enfermeira, mas ele falou que não precisava, pois não queria me dar trabalho”, relata.
Na manhã de domingo, Álvaro comentou com Luana que estava melhor. Segundo a enfermeira, ele disse que queria encontrá-la, mas antes precisava levar o carro para a oficina. O homem pediu R$ 600 emprestados para a mulher. “Ele disse que não estava conseguindo retirar aquele valor porque estava com problemas para acessar a conta bancária.”
A enfermeira emprestou o dinheiro. Ela deu o valor à mesma mulher que havia lhe entregado o buquê de flores. “Eu a encontrei para levar os R$ 600. O Álvaro me dizia que ela era uma amiga dele, que se chamava Fernanda”, relata Luana.
Nos dias seguintes, a enfermeira continuou conversando com o perfil que havia conhecido no aplicativo. Um encontro entre eles parecia cada vez mais distante. “Ele sempre inventava alguma desculpa. Dizia que estava indisposto ou que tinha excesso de trabalho”, relembra Luana.
A mulher afirma que não desconfiou que pudesse estar sendo enganada. “Não havia me questionado sobre a possibilidade de ele ser uma farsa. Para mim, era muito claro que o Álvaro existia”, comenta.
Quando completou uma semana desde que conheceu o homem, Luana recebeu um novo presente, também levado pela amiga dele. “Ele me mandou um buquê de flores, acompanhado de uma aliança e um pedido de casamento. Em seguida, o Álvaro me ligou e perguntou qual era a minha resposta. Eu disse que a gente precisava se conhecer. Ele me garantiu que iríamos nos ver naquela noite. Então, aceitei o pedido.”
Mais uma vez, Álvaro não apareceu para encontrar a enfermeira. Para desabafar sobre o que vivia, Luana ligou para uma amiga. “Eu estava tão presa naquela história que, desde que o conheci, havia me afastado dos meus amigos. Não tinha contado sobre ele a quase ninguém. Quando contei a nossa história para a minha amiga, ela desconfiou de tudo”, relata.
Os amigos da enfermeira a auxiliaram em busca de informações sobre aquele homem: não havia nenhum registro dele na Defensoria Pública do Amapá, nem mesmo nas listas de aprovados em concursos públicos da região.
“A princípio, tive muita dificuldade em acreditar que tinha sido enganada, porque realmente não queria enxergar que havia vivido uma mentira”, conta.
Os amigos convenceram a enfermeira a denunciar a história à polícia. “Por mais difícil que fosse, percebi que havia indícios de que ele era um fake. Havia indícios muito claros, mas eu não notava. Por exemplo, todos os dias ele me mandava fotos, sempre do mesmo lugar, que não parecia ser em Macapá. Além disso, ele não sabia nem o nome do Fórum da região. Se ele fosse mesmo defensor público, deveria saber”, comenta Luana.
A PRISÃO DE ‘ÁLVARO’
Após Luana registrar um boletim de ocorrência sobre o caso, uma amiga dela encontrou uma reportagem de meses atrás e mostrou para a enfermeira. “O texto falava sobre uma jovem que tinha sido presa por ter enganado várias mulheres. Quando vi a foto da moça, vi que era a Fernanda. Foi então que percebi que ela não era a amiga do Álvaro. Ela era ele”, relembra.
“Pra mim, foi um choque descobrir que era uma mulher. Sempre que nos falávamos no telefone, era a voz de um homem. Hoje, percebo que sempre havia um chiado na ligação, pra disfarçar. Mas ela conseguia enganar muito bem. Ela fazia até um sotaque gaúcho”, diz.
Para que a polícia pudesse prender a jovem por trás do perfil falso, a enfermeira combinou um encontro com Álvaro. “Ele me pediu R$ 300 emprestados e eu disse que emprestaria. Para isso, pedi que fosse me encontrar. Ele falou que pediria para a Fernanda pegar o dinheiro comigo.”
O advogado Marcelo Crespo, especialista em Direito Digital, explica que criar um perfil falso pode configurar, a princípio, crime de falsa identidade. “Nesses casos, a pessoa não vai presa. Mas ela pode ser condenada a até um ano de prisão. Essa pena é substituída por outras medidas, como serviço comunitário ou pagamento de cestas básicas”, explica.
Os casos mais graves, segundo Crespo, ocorrem quando o dono do perfil falso também pratica estelionato – buscar vantagem sobre o patrimônio de alguém por meio de fraudes. “A pessoa engana a vítima para se apropriar indevidamente de parte dos bens dela. Nessa situação, a pessoa pode ser presa e as penas variam de um a cinco anos”, pontua o advogado.
A jovem por trás do perfil de Álvaro foi presa por estelionato, no momento em que se encontrou com Luana. De acordo com a Polícia Civil, Lorrany Cristina, de 24 anos, enganou, ao menos, outras 20 mulheres. “A estimativa é de que ela tenha causado prejuízo de mais de R$ 20 mil a essas mulheres, ao todo, por meio de dinheiro que convencia as vítimas a emprestar”, explica o delegado Leandro Vieira Leite.
“Em junho do ano passado, ela já havia enganado outras mulheres e tinha sido presa pelo mesmo crime. Ela permaneceu durante quatro meses na prisão, foi solta e voltou a cometer o mesmo delito”, diz o delegado.
As fotos utilizadas por Lorrany eram de um advogado de Santa Catarina. “A Polícia Civil não chegou a ouvi-lo, porque já concluímos as investigações. Mas caso ele queira, poderá mover uma ação por danos morais contra a jovem”, relata o delegado.
A prisão em flagrante de Lorrany foi convertida para preventiva e ela permanece detida.
Mais de um mês depois da prisão da jovem, Luana revela que ainda se culpa por ter acreditado nas mentiras dela. “Havia alguns detalhes simples que não percebi. Eu poderia ter procurado saber se o Álvaro realmente existia”, diz.
Por mais de 10 dias, ela não conseguiu voltar para casa. “Fiquei com a minha mãe, porque tudo na minha casa me lembrava aquela história”, conta. Atualmente, a enfermeira tem feito acompanhamento psicológico. “Foi algo muito traumático. Por alguns dias, depois que tudo aconteceu, eu acordava no meio da madrugada e ficava pensando nisso.”
ENGANADO NO ORKUT
Os problemas emocionais trazidos pelo envolvimento com um perfil falso também são relatados pelo tarólogo Diogo Tavares, de 24 anos. Na adolescência, ele namorou por dois anos com um fake. “Era época do Orkut. Ele me adicionou, começamos a conversar e me encantei por ele, que era um rapaz muito bonito, que dizia ter 21 anos. Eu estava descobrindo a minha sexualidade e era muito contido no dia a dia. A internet acabava sendo o meu refúgio”, relata.
Uma semana depois de Diogo conhecer o rapaz, que dizia se chamar Caio, os dois começaram a namorar virtualmente. “Ele dizia que era surfista, morava em Maresias (SP) e que tinha uma loja de surfe. Parecia o rapaz dos sonhos. Eu era completamente apaixonado por ele. Passávamos mais de duas horas no telefone, quase todos os dias”, conta o tarólogo, que na época tinha 15 anos.
Segundo a psicóloga Ana Sandra Fernandes, os responsáveis pelos fakescostumam criar os perfis com base naquilo que acreditam que está dentro dos padrões da sociedade. “Entre os autores desses perfis, penso que pode existir uma necessidade de aceitação e autoafirmação. Muitas vezes, a pessoa se dá conta de que o perfil real dela, como realmente é, não chama a atenção de ninguém. Então, ela imagina alguém que as pessoas gostariam de ter por perto.”
“Não é muito difícil imaginar esse padrão de perfeição. A mídia mostra o que é um relacionamento ideal, um casal perfeito, e também quais os tipos físicos que costumam chamar mais a atenção. A gente vive em uma sociedade com dificuldades para aceitar pessoas diferentes de um suposto padrão, então esses perfis falsos seguem esse estereótipo do que seria perfeito”, acrescenta Fernandes.
Diogo conta que ficou encantado com a atenção que recebia do rapaz. “Eu tinha uma autoestima muito baixa e ele me ajudava muito. Ele sempre falava as coisas que eu queria ouvir e me apoiava. Não conseguia enxergar nenhum defeito nele. Era muito surreal isso.”
Meses depois de iniciar o relacionamento virtual, o tarólogo, que mora em Águas Claras (DF), tentou visitar Caio. “Eu disse a ele que tinha dinheiro guardado e poderia ir a Maresias, para vê-lo, mas ele falou que não poderia, porque estava muito ocupado com o trabalho. Isso me deixou triste, mas não a ponto de desistir dele.”
Por dois anos, eles mantiveram a relação. O jovem somente descobriu que havia sido enganado quando criou um perfil no Facebook. “Eu encontrei um rapaz com as mesmas fotos que o Caio. Além disso, as imagens eram muito mais atuais do que as que ele me mandava. Tive dificuldades para acreditar, mas ali eu entendi que fui enganado por tanto tempo”, relata.
Diogo enviou mensagem para o dono das fotos utilizadas pelo então namorado. “O rapaz não deu muita importância. Mas me agradeceu por ter contado”, diz.
O tarólogo confrontou Caio sobre a descoberta. “A princípio, ele negou. Mas depois confirmou que era fake. Para mim foi muito triste. Fiquei completamente arrasado”, relembra. Depois de Diogo insistir, o rapaz revelou a verdadeira identidade. “Ele era uma pessoa que não me interessaria, normalmente. Além de tudo, havia mentido para mim. Tudo isso me deixou bastante abalado”, lamenta.
Mesmo revoltado com a situação, o tarólogo optou por não denunciá-lo. “Penso que não aconteceria nada com ele. Então, não valeria a pena me desgastar e procurar a polícia.”
A história com o perfil falso é considerada pelo tarólogo como um de seus maiores traumas. Durante anos, o caso prejudicou suas relações. “Tive muitas dificuldades para confiar nas pessoas. Isso atrapalhava as minhas relações. Hoje, considero que superei e tento não idealizar as pessoas.”
MOMENTO DE FRAGILIDADE
Para a vendedora Marta*, de 47 anos, um relacionamento virtual também representa um de seus maiores traumas. Moradora de uma pequena cidade do interior do Paraná – ela optou por não informar o município -, a mulher conheceu, no fim de 2015, um homem que se dizia um engenheiro irlandês.
“Ele me adicionou no Facebook e eu aceitei, mesmo não o conhecendo. Ele passou a me mandar mensagens com conteúdo romântico. No início, eu relutei e não dei atenção. Mas ele continuou. Eu acabei gostando de ler aquelas coisas e passei a corresponder”, relata.
O homem, que dizia morar na Irlanda, afirmava que queria se casar com ela. A vendedora logo se apaixonou. Marta não chegou a pesquisar sobre a vida do pretendente, nem sobre a veracidade das declarações dele.
Os parentes e amigos dela não aprovavam a relação virtual, pois alegavam que era arriscado que ela se envolvesse com alguém que havia conhecido na internet. Marta, porém, não ouviu os familiares e namorou por dois anos com o suposto engenheiro.
Certa vez, o homem disse que viria ao Brasil para conhecê-la. Enviou uma imagem de uma passagem aérea, com informações da chegada no país. Marta foi ao aeroporto, que fica em uma cidade vizinha, para esperar por ele, que não apareceu. “Foi muito frustrante”, conta a vendedora. Ele alegou que havia sofrido um acidente enquanto ia ao aeroporto.
Apesar da frustração, Marta continuou conversando com o suposto engenheiro irlandês. Para o casal de filhos dela – de 23 e 19 anos -, a carência da mãe fazia com que ela mantivesse contato com o homem.
“Ela acreditava em todas as mentiras dele. Muitas vezes, ele mandava fotos para a minha mãe, que eram claramente montagens, mas ela não questionava e continuava encantada com ele”, diz a filha da vendedora.
“Ela vivia uma fase muito frágil da vida e esse homem a manipulou totalmente”, diz a jovem.
Os filhos acreditam que o homem mentia sobre a nacionalidade irlandesa. “Ele dizia que conversava com a minha mãe pelo tradutor do Google. Mas quando ele mandava áudios em inglês, não parecia ter sotaque europeu. Acredito que ele era de outro país estrangeiro”, diz a filha dela.
Ao longo do período em que mantiveram uma relação virtual, o homem pediu dinheiro para Marta. Em uma das vezes, disse ter sofrido um acidente. A vendedora alegou que não tinha o valor solicitado por ele.
A descoberta de que o perfil era falso ocorreu no fim de 2017, quando Marta percebeu que outra brasileira comentava as publicações do homem no Facebook. “Entrei em contato com essa mulher, que me disse que conversava há cinco anos com ele e que já havia enviado dinheiro para ele. Foi então que percebi que realmente era um golpe e que esse homem estava me enganando o tempo todo”, lamenta a mulher.
“Eu fiquei completamente frustrada. Eu acreditava naquele relacionamento. Abri mão de conhecer outras pessoas por causa dele. Ficava presa às mensagens dele o tempo todo”, comenta.
Marta não denunciou o fake. Até hoje, não sabe quem era o homem por trás das fotos que ele utilizava para enganá-la. Ao descobrir a farsa, o bloqueou das redes sociais e afirma não manter contatos com ele. A vendedora conta que teve dificuldades para superar a situação. Hoje, alerta outras pessoas.
“Um conselho que dou é para que as pessoas não se iludam e não percam tempo com conto de fadas. Não existe gente perfeita. É importante checar as informações sobre aquela pessoa que você está conhecendo. É muito triste se sentir enganada”, diz.
Ela relata que, após meses sem sair de casa, retomou a rotina. “Hoje, me permito conhecer apenas pessoas reais. Estou me dando uma chance de recomeçar a vida. Desta vez, estou com um homem que conheci pessoalmente.”
*Nomes alterados a pedido dos entrevistados.