Casal de mulheres luta na Justiça para manter união

O carteiro bateu na porta de Adrieli e Anelise na manhã desta segunda-feira trazendo uma correspondência incomum: uma carta informava que um promotor do Ministério Público de Florianópolis estava tentando anular o casamento das duas.

“Eu pensei: Hã? Como assim?”, conta a engenheira civil Adrieli Nunes Shons, de 30 anos. “Quando nos casamos, pensamos: pronto, não tem mais volta”, diz a médica Anelise Nunes Schons, de 30 anos, que trocou o sobrenome para o mesmo da esposa.

Elas trocaram alianças no dia 9 de dezembro do ano passado. No entanto, o promotor Henrique Limongi, da 13ª Promotoria da Comarca de Florianópolis, pediu à Justiça para anular a cerimônia.

Por quê?

Nas palavras do promotor, “a Constituição Federal é de solar clareza”: casamento no Brasil só pode ocorrer entre homem e mulher. Escrito em 1988, o parágrafo 3º do artigo 226 da Carta Magna diz: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Entretanto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um direito reconhecido no Brasil desde 2011. Naquele ano, entrou em vigor uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obrigando todos os cartórios do país a realizar as uniões.

Dois anos antes, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que casais homoafetivos tinham os mesmos direitos que os heterossexuais, ou seja, eles poderiam se casar.

Na prática, essas duas decisões liberaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo mesmo que não exista nenhuma lei específica sobre o assunto. Segundo o CNJ, houve 19,5 mil uniões desse tipo Brasil entre 2013 e 2016, o que representa 0,5% do total no período.

Como se faz um casamento?

Para se casar, é necessário procurar um cartório, que pedirá à Justiça a habilitação para realizar a cerimônia. Isso ocorre, por exemplo, para checar se alguém da dupla já é casada. Em tese, o Ministério Público pode vetar a união, mas esse movimento não é muito comum. Se houver a negativa, o caso vai para um juiz, que pode proibir ou não.

Adrieli e Anelise com seus respectivos paisDireito de imagemRODRIGO SANTOS
Image captionMatrimônio homoafetivo, como o de Anelise e Adrieli, foi autorizado pelo Supremo Tribunal Federal em 2011 e pelo CNJ em 2013

Adrieli e Anelise seguiram o procedimento. Em setembro do ano passado, elas procuraram um cartório em Florianópolis, onde moram, para pedir a homologação, que costuma demorar poucos dias.

“O cartório já avisou que o documento iria demorar, porque o promotor sempre nega a habilitação para casais homoafetivos”, conta Adrieli. O próprio cartório afirmou que iria recorrer em uma possível negativa, o que de fato aconteceu.

Segundo o Ministério Público de Santa Catarina, o promotor Henrique Limongi negou 69 matrimônios entre pessoas do mesmo sexo desde 2015. Para fugir das negativas de Limongi, casais da cidade chegam a pedir habilitação em outros municípios.

“Temos amigos que mudaram o comprovante de endereço apenas para o processo não cair nas mãos dele (promotor)”, diz Anelise. “Nós não quisemos fazer isso, porque somos de Florianópolis e queríamos casar aqui”, afirma Adrieli.

O caso delas foi parar nas mãos da juíza-substituta Lucilene dos Santos. Ela autorizou o casamento, seguindo as diretrizes do CNJ e do STF, e contrariando o promotor.

No entanto, Limongi não desistiu e recorreu da decisão da Justiça. Ele agora quer que o casamento seja cancelado.

A advogada Camilla Wesslerhinckel vai defender o casal, que tem 15 dias para apresentar uma resposta ao promotor.

“Ao meu ver, o entendimento dele é bastante ultrapassado diante da realidade que a gente vive. E uma afronta à Constituição, pois viola o direito da igualdade”, explica. “Não pode haver essa distinção porque elas são do mesmo sexo. O próprio STF tem entendimento disso.”

Críticas ao promotor

Adrieli e Anelise Nunes Shons em casamentoDireito de imagemRODRIGO SANTOS
Image captionAdrieli e Anelise Nunes Shons tiveram de contratar uma advogada para se defender de pedido de anulação de casamento

O promotor Henrique Limongi entrou no Ministério Público em 1981, na cidade catarinense de São Miguel do Oeste.

Em 2013, a Corregedoria Nacional do MP instaurou reclamação disciplinar para apurar a conduta de Limongi em casos de uniões homoafetivas. O processo foi arquivado posteriormente, pois a Corregedoria entendeu que ele “praticou ato relativo à atividade-fim”, segundo o Conselho Nacional do Ministério Público.

Tentamos contato com Limongi, por telefone, mas ele não atendeu às ligações. Por meio de nota, o promotor afirmou que não fala com jornalistas e só se manifesta nos autos do processo.

Em 2013, após críticas por sua postura, ele negou ser homofóbico: “É epíteto raivoso (as críticas). Gratuito. Ora, se todas as leis que versam a matéria estampam que a união estável se dará entre homem e mulher, fácil constatar que o parecer havido como ‘polêmico’ é marcadamente jurídico, fundado em postura estritamente legalista.”

‘Não temos os mesmos direitos’

Adrieli e Anelize se conheceram em um aplicativo de namoro, em 2013. “Não deu certo de primeira”, contam, rindo. Meses depois, ela se encontraram na fila do banheiro de uma festa.

Começaram a se falar e, meses depois, já estavam morando juntas. “Nunca sofremos homofobia em nossas famílias, como ocorre com muitos casais. Nunca pensamos que iríamos sofrer homofobia institucional”, diz Adrieli.

Anelize afirma que o imbróglio jurídico a deixa frustrada em relação ao país. “A gente contribui com a sociedade como todas as pessoas, mas não temos os mesmos direitos. Isso não aconteceria com um casal hetero”, diz.

Elas tiveram que contratar uma advogada para defendê-las na Justiça.

As duas esperam um final feliz na segunda instância. “Estamos pensando em filhos”, diz Adrieli.

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