Há oito meses, Rebeca Mendes Silva, a primeira mulher a pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) para fazer um aborto no Brasil, interrompia a gestaçãolegalmente, com assistência médica e psicológica na Colômbia, para onde foi depois de ter o pedido negado pela Justiça brasileira. Saiu da clínica com o método contraceptivo que escolheu, após ser aconselhada pelos profissionais de saúde: um implante hormonal subcutâneo com duração de três anos.
Assim como ela, dezenas de mulheres brasileiras que se encontram diante de uma gestação indesejada têm optado por viajar aos poucos países do continente americano onde o aborto é legalizado, segundo representantes de ONGs de proteção aos direitos das mulheres ouvidas pela BBC News Brasil.
De acordo com o advogado criminalista Pierpaolo Bottini, se a mulher fizer o procedimento num país onde a prática não é considerada crime, ela não pode ser processada e punida ao retornar ao Brasil.
“Nosso Código Penal diz que você só responde por crimes cometidos em território nacional. Você pode responder, excepcionalmente, por crimes praticados fora desde que seja um crime também no país onde o ato foi cometido”, disse.
Mas a opção de fazer uma viagem internacional só é acessível para quem tem recursos ou consegue o apoio de ONGs, como Rebeca – ela teve passagem e procedimento pagos por entidades de defesa dos direitos das mulheres.
Por pouco – mais precisamente, por sete votos – a Argentina não se torna uma opção a mais para quem quer interromper a gravidez de forma segura e legal fora do Brasil. Depois de ser aprovado em junho pela Câmara, um projeto de lei que legalizaria o aborto até a décima quarta semana foi rejeitado pelo Senado argentino por 38 votos a 31.
Atualmente, a interrupção da gestação é crime na Argentina. O aborto só é permitido em caso de estupro e risco de vida para a mãe.
Países da América onde o aborto é permitido
No Caribe e América do Sul, apenas Cuba, Guiana Francesa, Guiana, Porto Rico e Uruguai permitem a interrupção da gestação amplamente, em todo o território.
O Uruguai, entretanto, só oferece o procedimento de aborto a estrangeiras que estiverem morando lá há pelo menos um ano. A Colômbia admite a interrupção da gravidez desde 2006 – por decisão da Suprema Corte do país – em caso de risco à saúde física e mental da mulher, e em casos de estupro, incesto e deformidade severa do feto.
Na prática, isso permitiu o aborto em caso de gravidez indesejada, na medida em que se considera que obrigar a mulher a continuar com uma gestação contra a sua vontade é impor a ela sofrimento psicológico.
Colombianas podem fazer o procedimento pelo sistema público de saúde, e clínicas particulares oferecem o serviço tanto para nacionais quanto para estrangeiras.
Pelo menos uma mulher brasileira se dirige à Colômbia a cada mês para fazer o procedimento de aborto, segundo a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília e coordenadora do Instituto de Bioética Anis, voltado a pesquisas relacionadas aos direitos das mulheres.
Mas os altos custos limitam o acesso a esse tipo de alternativa de interrupção da gestação. No Brasil, o aborto é crime, com pena de até três anos de prisão para a gestante. Só é possível interromper a gestação em caso de estupro, risco de vida para a mãe e feto com anencefalia – neste último caso, a decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal.
“Eu diria que é na ordem de uns R$ 6 mil (os custos totais para fazer um aborto na Colômbia). Ou seja, é muito dinheiro”, disse Débora Diniz à BBC News Brasil.
“Além do que, há uma série de documentos exigidos que não fazem parte da vida da mulher média brasileira, desde ter a vacina internacional de febre amarela a passaporte e outros documentos. Então, é uma opção muito limitada e concentrada nas mulheres mais abastadas.”
A argentina Giselle Carino, diretora regional da ONG de defesa dos direitos das mulheres International Planned Parenthood Federation, também diz que o principal destino de brasileiras quando querem fazer um aborto legal é a Colômbia, porque lá há mais clínicas e hospitais que fornecem o serviço. A ida de venezuelanas à Colômbia com a mesma finalidade também é frequente, segundo ela.
“Por causa do arcabouço legal e da infraestrutura, as venezuelanas e brasileiras têm procurado mais a Colômbia. A Cidade do México também é procurada, mas mais frequentemente por mulheres que moram nos países vizinhos”, disse ela à BBC News Brasil.
No México, o aborto é permitido na capital do país até a décima segunda semana de gestação.
Mais recentemente, a Bolívia flexibilizou a legislação sobre aborto, para descriminalizar a prática quando feita nas primeiras oito semanas de gestação quando a grávida for estudante ou tiver sob seus cuidados pessoas adultas com incapacidades, crianças com deficiência, ou outros “menores consanguíneos”.
Mas, segundo Giselle Carino, a realidade ainda é de difícil acesso ao serviço. Por isso, dificilmente a Bolívia é procurada por estrangeiras interessadas em fazer um aborto. E, assim como Débora Diniz, Carino destaca que, ainda que a procura tenha aumentado, a opção de fazer um aborto fora de seu país não é realidade para as mulheres mais pobres.
“Há muitas disparidades na região. Mulheres que não têm dinheiro ou acesso à informação para pedir ajuda não conseguem fazer um aborto fora do país”, diz.
Aconselhamento para evitar aborto de ‘repetição’
Luz Janeth é gerente de projetos do Profamilia, empresa privada da Colômbia que tem 30 clínicas no país destinadas a pesquisas sobre saúde sexual e atendimento de mulheres que querem interromper a gravidez.
Foi numa delas que Rebeca Mendes fez o procedimento de aborto, em dezembro. Segundo Janeth, a instituição já recebeu mais de 220 estrangeiras desde 2014, para interrupção de gestação.
Lá, elas recebem atendimento médico, psicológico e saem com um método contraceptivo, além de serem aconselhadas sobre todas as formas de evitar uma gestação.
O objetivo é evitar que a mesma mulher engravide novamente e volte a fazer um aborto. De acordo com a médica ginecologista Melania Amorim, professora do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, em Pernambuco, os chamados “abortos de repetição” são mais de 40% dos abortos provocados.
“Com o acolhimento das mulheres durante e após o aborto, você evita um próximo aborto. Você consegue ouvir a mulher e aconselhá-la a usar um método contraceptivo eficiente”, afirma.
Segundo estudo da Organização Mundial de Saúde em parceria com o Guttmacher Institute, de Nova York, a incidência do aborto tem recuado nos países onde a prática é majoritariamente legalizada. Enquanto entre 1990 e 1994, 39% das gestações em países desenvolvidos terminaram em aborto, esse índice caiu para 28% no período de 2010 a 2014. Já na América Latina e Caribe a taxa cresceu no mesmo intervalo de comparação, passando de 23% para 32%, reflexo da conjunção da falta de políticas de planejamento familiar e acesso a métodos contraceptivos com o aumento do desejo por famílias menores.
América Latina no contexto global
Na América Latina e no Caribe, 97% das mulheres vivem sob regras que proíbem ou restringem sensivelmente o aborto, impedindo a liberdade de escolha, calcula o Guttmacher Institute, organização americana focada em diretos sexuais e reprodutivos.
São países em que o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em casos de estupro ou quando a gravidez representa risco à saúde da gestante.
Mas, segundo o mesmo instituto, essa situação não se reflete em níveis globais: a maioria das mulheres em idade reprodutiva no mundo (cerca de 60%) vive em países onde o aborto é permitido em circunstâncias amplas ou sem restrições. Isso inclui 74 nações em que é possível interromper a gravidez sem necessidade de qualquer justificativa ou que autorizam o procedimento em uma larga gama de situações, inclusive por razões socioeconômicas.
O aborto é permitido nos Estados Unidos e Canadá, e na esmagadora maioria dos países da União Europeia. Em alguns países, o procedimento é oferecido gratuitamente aos cidadãos, pelo serviço público de saúde, como é o caso do Reino Unido.
A advogada Angela Vidal Gandra Martins, da União dos Juristas Católicos de São Paulo, argumenta que a legislação sobre aborto no Brasil não deve se pautar pela lei de outros países. Ela questiona a classificação de países ricos que permitem a interrupção voluntária da gravidez como “desenvolvidos”.
“Não significa desenvolvimento aprovar o aborto. São países utilitaristas que venceram economicamente. Hoje a gente tem visão de que o progresso é econômico e de uma moralidade pública baseada numa falsa liberdade que é utilizar o outro como meio para os próprios fins. Nem todo desenvolvimento econômico significa relações humanas profundas”, defendeu.
Já a antropóloga Debora Diniz argumenta que a América Latina não acompanhou o movimento de legalização do aborto no mundo desenvolvido porque a maioria dos países estava sob ditadura militar entre os anos 60 e 80. Ela ressalta que esses regimes, em geral, contavam com apoio de setores conservadores religiosos.
“Nós estamos na região mais conservadora do mundo em termos de legislação por uma herança de uma ausência de debate público qualificado para questões democráticas e de direitos individuais. Essa é a primeira geração de mulheres (no continente) que está vivendo fora de ditaduras militares, governos em que as igrejas eram muito fortes”, analisou.