A polêmica nos EUA pela aprovação de um app para celular como método anticoncepcional

Adeus dispositivo intrauterino, pílula, adesivo, anel vaginal. Bem vindo, telefone celular.

A agência que regula alimentos e medicamentos nos Estados Unidos(FDA, na sigla em inglês) concedeu, recentemente, autorização para uso do Natural Cycles (Ciclos Naturais), um aplicativo de celular sueco que diz prevenir a gravidez.

É a primeira vez na história que a FDA reconhece um aplicativo como método contraceptivo. Para especialistas, a decisão tem potencial para impulsionar a chamada “femtech”, a indústria emergente de tecnologias voltadas para a saúde da mulher, que já movimentou, nos últimos três anos, cifras que giram em torno de US$ 1 bilhão.

Esse tipo de “contraceptivo digital” é um dos produtos que mais cresce nesse segmento. Aplicativos como Clue, Glow, Period Tracker, Kindara e Eve oferecem serviços como calendários de ciclos menstruais ou notificações automáticas para tomar medicamentos contraceptivos.

No entanto, a aprovação do Natural Cycles provocou uma onda de críticas dentro e fora dos EUA, em particular por causa de denúncias de casos de gravidez por pessoas que estavam usando a tecnologia.

Indústria emergente

As novas tecnologias destinadas à saúde da mulher têm crescido de forma rápida nos últimos anos, a ponto de, segundo previsões, ser um mercado que movimentará US$ 50 bilhões em menos de dez anos. Os aplicativos que prometem ajudar a prevenir a gravidez funcionam contabilizando os ciclos da menstruação, a partir dos quais identificam o período de ovulação.

O aplicativo sueco, que custa US$ 79,99 (R$ 323) ao ano, usa um termômetro basal – de duas casas decimais, que deve ser introduzido na boca ou na vagina – para medir a temperatura da mulher quando ela acorda. A ideia é que se o app indicar que a mulher está no seu período fértil, ela não tenha relações sexuais.

Até o momento, nenhum dos outros aplicativos neste segmento conseguiu o endosso por agências de saúde que o Natural Cycles obteve.

Em 2017, o app sueco já havia sido aprovado como “dispositivo médico” pela União Europeia.

Mas como foi comprovada a eficácia desse equipamento?

Os testes

De acordo com a Natural Cycles, o app conta com mais de 900 mil usuários em todo o mundo. A empresa, criada pelo casal Elina Berglund e Raoul Scherwitzl, funciona com base no tradicional método do cálculo das chamadas janelas de ovulação – o intervalo de seis dias entre o início e o fim da ovulação que é o período mais fértil da mulher – baseado no ciclo menstrual e na temperatura corporal. O método é comum entre mulheres que – por razões de crença religiosa ou ideológica – se recusam a usar ou evitam métodos contraceptivos como a pílula, o DIU ou o anel vaginal.

Porcentagem de mulheres que usou corretamente o app autorizado nos EUA e ainda assim ficou grávida foi de 1,8%, segundo teste da empresa (Foto: Pexels)

Porcentagem de mulheres que usou corretamente o app autorizado nos EUA e ainda assim ficou grávida foi de 1,8%, segundo teste da empresa (Foto: Pexels)

Segundo a FDA, estudos clínicos realizados pela própria empresa para avaliar a eficácia do app contaram com mais de 15,5 mil mulheres que usaram o aplicativo por um período de oito meses.

De acordo com a agência americana, os resultados indicam que apenas 1,8% das mulheres que usaram o aplicativo de forma correta ficaram grávidas.

Os estudos apontaram ainda que 6,5% das mulheres que ficaram grávidas não usaram o aplicativo de forma correta – tendo relações sem proteção em dias férteis.

Ainda assim, a taxa de fracasso do aplicativo é considerada baixa. A título de comparação, pílulas apresentam nos EUA taxas de fracasso de 9% e camisinhas de 18%, de acordo com estatísticas do Centro para Controle e Prevenção de Doenças.

E por que esse aplicativo é tão polêmico?

A polêmica do app contraceptivo

Pouco antes de ser aprovado nos EUA, a Advertising Standards Authority (ASA na sigla em inglês), organização que regula a indústria publicitária no Reino Unido, lançou uma investigação sobre o marketing do produto após receber denúncia de mulheres que ficaram grávidas enquanto estavam usando o app Natural Cycles em 2017.

Entrevistado pelo jornal britânico The Guardian, um porta-voz disse que a agência questionou a afirmação feita em anúncio do app no Facebook, por exemplo, de que ele seria um “anticoncepcional altamente preciso”.

“Para sustentar esse tipo de afirmação, a empresa requer fundamentação”, disse o porta-voz.

Segundo o jornal, a Natural Cycles acatou as recomendações da Asa e mudou sua campanha de marketing.

O app também está sendo investigado pela Agência de Produtos Médicos da Suécia por relatos de outras 37 mulheres que eram usuárias do app, mas que tiveram de fazer aborto porque o método de controle havia falhado.

A Natural Cycles informou ter conhecimento das acusações, mas disse que esse número estava “alinhado” com as “expectativas” da companhia.

A Associação de Planejamento Familiar do Reino Unido, segundo declarações publicadas no jornal britânico The Guardian, questionou as decisões de conceder certificado ou autorizar oficialmente o produto sem que houvesse respaldo de pesquisas independentes.

“A única evidência é da própria empresa”, disse uma porta-voz. “Eles acumularam uma vasta base de dados, que é muito interessante, mas não é a mesma coisa que evidência verificada de forma independente.”

A aprovação da FDA também gerou polêmica na comunidade científica americana. Lauren Streicher, professora de obstetrícia clínica e ginecologia na Universidade Northwestern disse ao site The Vox que a notícia a deixou sem palavras e que considera o aplicativo “problemático em muitos níveis”.

“Isso não é ciência, é uma loucura. Já temos desenvolvido métodos contraceptivos bons, seguros e confiáveis, que estão disponíveis. Esse aplicativo está levando as mulheres a voltarem no tempo”, declarou a professora.

Por sua vez, Laura MacIsaac, professora associada de obstetrícia na Escola de Medicina de Mount Sinai, em Nova York, disse ao jornal americano The Washington Post que esse tipo de método tende a falhar porque suas formas de uso nem sempre coincidem com a dinâmica da vida cotidiana das mulheres.

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